A indiferença que se firma nas palavras é um fenômeno profundamente enraizado na sociedade contemporânea. Enquanto muitos discursos e manifestos clamam pelas mudanças social e ambientalmente necessárias, o que se revela é uma desconexão entre as palavras e as ações. Exemplo marcante dessa desconexão é a contradição entre a demonização do uso do petróleo e a timidez na adoção de alternativas sustentáveis, como a massificação do uso do biogás. Prefere-se aceitar que um tentáculo das petroleiras tenha se convertido num galho verde, limpo e sustentável graças à força de bilhões de dólares. Há outros exemplos, porém.
A sociedade diz ser cada vez mais consciente dos danos ambientais causados pela queima de combustíveis fósseis, e tenta a transição para fontes de energia limpas e renováveis. No entanto, apesar dos avanços tecnológicos e da disponibilidade de opções sustentáveis, o uso do biogás como alternativa viável ao petróleo, injustificadamente, ainda não foi alcançado. Talvez, pela disponibilidade de outras fontes ditas limpas. E pelo entendimento geral, para ser energia limpa, basta que não derive do petróleo. Daí esses parques semeadores de desertos, daí o afogamento de áreas e deslocamento de pessoas nativas. Tudo validado e aceito como importante e necessário.
Essa aparente apatia em relação ao biogás pode ser atribuída a uma série de fatores complexos. Em primeiro lugar, há uma resistência à mudança em muitos setores da sociedade, especialmente quando essa mudança significa a quebra de paradigmas. Além disso, a falta de sensibilização e educação sobre as vantagens da produção e uso do biogás e sua disponibilidade também contribuem para o atraso.
Outro exemplo marcante e gritante está nas práticas de saneamento básico nas áreas urbanizadas do planeta. Embora as engenharias tenham avançado consideravelmente ao longo dos anos, aceita-se como natural o livrar-se das fezes humanas com água tratada que deveria ser direcionada para a dessedentação. E também aqui podemos evocar o uso do biogás, já que este é produzido a partir da matéria orgânica em biodigestores, e cocô é matéria orgânica. Enquanto isso as palavras avançam como panaceia.
Essa prática antiquada, ineficiente e inoportuna de se livrar do cocô com água potável sugere a falta de priorização e investimento em soluções sustentáveis de saneamento, que melhorariam a saúde e qualidade de vida das pessoas e preservariam recursos naturais necessários e preciosos, e já escassos.
É importante reconhecer, no entanto, que o divórcio entre as palavras e as ações vai além de exemplos específicos e se espalha por muitos aspectos da vida cotidiana, desde a adoção de práticas de consumo irresponsáveis até a negligência em relação às necessidades do estrato marginalizado e vulnerável da sociedade. E nisto temos sido pouco inteligentes.
Um biodigestor produz mais do que biogás e biofertilizante; ele pode produzir dignidade e reduzir os custos com saúde pública. Se se disponibilizar um biodigestor para cada família pobre do meio rural ou para grupo de indigentes das grandes cidades, estes passam a ter um ambiente adequado para atender suas necessidades fisiológicas, além do aproveitamento das próprias fezes como fonte de combustível para o preparo de alimentos e até aquecimento contra o frio. Mas isto também não será mais que palavras se não for convertido em política que alcance e beneficie as pessoas.
Está mais do que na hora de a sociedade humana alinhar as palavras às ações para expressar seus (nossos) valores de compromisso e responsabilidade mútua. Somente quando agirmos em conformidade com o que pregamos (e isto nada tem a ver com guerras, autoritarismos e tais) poderemos, afinal, efetuar mudanças que a todos beneficiem, preservando as condições para a continuidade da vida na Terra.
Mestre em Ecologia Humana e Problemas Sociais Contemporâneos pela Universidade Nova de Lisboa, Pós-graduado em Educação Ambiental, em Gestão Ambiental e Sanitária e Técnico em Meio Ambiente. É consultor especialista em biogás.